quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
AV052 PANE SECA, PANE MENTAL
CRM é a sigla em inglês que define Cockpit Resource Management. Explicando, é a área de estudos que examina a interação entre tripulantes técnicos a bordo das cabines de aeronaves comerciais. Há muito descobriu-se que uma perfeita integração entre os tripulantes aumenta dramaticamente a eficiência e segurança das operações. Uma tripulação que trabalha como um time, na qual a hierarquia serve para apenas fins práticos, e não para autoritarismo e intimidação, é infinitamente mais preparada para lidar com emergências. Ou até para evitar que ações ou procedimentos incorretos de um dos tripulantes, que colocariam a aeronave numa situação potencialmente perigosa, catastrófica, seja evitada. Este Blackbox cobre o trágico fim do vôo Avianca 052, um exemplo perfeito das trágicas conseqüências da falta de CRM. A tarde e a noite de 25 de janeiro de 1990 era uma tempestuosa jornada, típica de inverno no nordeste dos Estados Unidos. Uma enorme frontal que precedia uma forte massa de ar polar, cobria boa parte da região. E era extremamente rigorosa naquele dia, provocando nevascas e tempestades em várias cidades. Sei disso porque voei exatamente no meio dessa nefasta frente. Estava a bordo do vôo Delta 735, um 767-300ER procedente de Atlanta, terceira aeronave programada para pouso atrás do Avianca 052, no aeroporto Kennedy, em Nova York. Também tivemos de aguardar nossa vez para pousar em órbitas, chacoalhando muito durante a espera. Durante a aproximação final, o 767 jogava violentamente de um lado para outro, castigado por rajadas de vento de mais de 40 nós. Numa delas, cheguei até a bater a cabeça violentamente contra a parede lateral da cabine, tamanha a severidade a rajada. Essa tormenta havia provocado um absoluto caos na aviação comercial, em especial na terminal de Nova York. Vôos foram cancelados, outros tantos severamente atrasados. Houve até aqueles que, por falta de condições de visibilidade ou combustível, tiveram que alternar para outros aeroportos, como Boston, Washington, Philadelphia ou até mesmo Chicago. Nessa noite inclemente, aproximava-se da terminal de New York um veterano Boeing 707-320C, prefixo HK-2016, da companhia colombiana Avianca. O vôo AV 052 havia partido naquela tarde de Medellín, feito escala em Bogotá e prosseguia direto para New York. O vôo chegou à terminal já com boa parte do combustível consumido, pois teve de enfrentar fortes ventos de proa por quase toda a viagem. Suas reservas eram mesmo insuficientes para o pesado tráfego e para a longa espera que, informado pelo centro de tráfego de New York, teria de enfrentar. Aguardando sua vez de pousar em céus congestionadíssimos, a tripulação ficou impaciente e preocupada, quando recebeu autorização para circular em órbitas, numa região a sudeste do aeroporto de JFK. Mas isso era apenas um dos problemas do AV 052. Naquela noite, o comandante encarregado do vôo, um veterano da Avianca com 55 anos de idade, apesar de ser comandante de vôos internacionais, não falava inglês. Para piorar, sofria de problemnas auditivos, dois fatores que comprometem seriamente a segurança nas operações. E que demonstram a falta de seriedade da empresa na questão de segurança. O único capaz de entender o idioma de Shakespeare, ainda que de forma bastante básica, era o co-piloto, justamente por isso encarregado das comunicações com o solo. Ele, porém, era bastante mais jovem que o comandante, com apenas 36 anos. Como tal, não ousaria contestar ordens ou dar palpites na operação da aeronave. O engenheiro de vôo, sentado logo atrás, embora também não falasse inglês, tinha alguma noção do idioma, o suficiente para ao menos entender a fraseologia padrão nas comunicações. Vamos agora entrar na cabine de comando do 707 justamente quando o engenheirio de vôo estuda o manual e procedimentios de emrgência para o caso de pane seca (falta de combustível).
Usaremos algumas abreviações:
Cap: Comandante
F/O: Primeiro Oficial (co-piloto)
F/E: Engenheiro de vôo
APP: Controle de aproximação de New York
TWR: Torre do aeroporto J. F. Kennedy em New York
F/E: Quando chegarmos a 1.000 libras de combustível em cada tanque teremos de declarar emergência.
F/O: Sim senhor.
F/E: O manual diz que nos procedimentos de arremetida, a potência deve ser aplicada com calma, evitando acelerações bruscas. e manter o nariz com o mínimo de elevação.
Cap: Manter o quê?
F/O: Mínimo, mínimo, manter o nariz com o mínimo de elevação.
F/E: Acho que vai dar tudo certo.
F/O: E selecionar flaps 25 e manter a V-REF mais 20 nós.
F/E: (lendo o manual de procedimentos) "Retrair o trem de pouso somente com razão positiva de subida, manter o nariz mais baixo possível".
Cap: Qual a proa que você tem? Selecione o Kennedy aqui do meu lado. Já passamos o través do aeroporto?
F/O: Sim, estamos na perna do vento, já passamos o través.
APP: Avianca 052 heavy, curva a esquerda, proa três meia zero.
F/O: Virando a esquerda, proa três meia zero, Avianca 052 heavy. Mais alguns minutos se passam, com o comandante dando claros sinais de tensão. Ele já fala num tom de voz mais elevado, praticamente grita ordens com os outros tripulantes na cabine. Um clima de intimidação que impede a cooperação e coordenação de ações, de tomada de decisões.
APP: Avianca 052 heavy, curva a esquerda, proa três três zero.
F/O: Esquerda, três três zero, Avianca 052 heavy.
F/E: (novamente lendo o manual de procedimentos) "No caso de arremetida, o nariz deve permanecer baixo. Caso contrário, as bombas (alimentadoras de combustível) podem ficar descobertas e provocar flame-outs." (apagamento dos motores)
Cap: Proa três três zero.
F/O: Três três zero, temos 27. er, 17 milhas para o aeroporto.
F/E: Ah, ok.
F/O: Isso significa que hoje à noite vamos jantar hamburger.
APP: Avianca 052 heavy, curva à esquerda, proa dois nove zero.
F/O: Proa dois nove zero, Avianca 052 heavy.
F/O: Selecione dois nove zero, comandante.
APP: Avianca 052 desça e mantenha, ah, 3.000 pés.
F/O: Descerá e manterá 3.000 pés, Avianca 052 heavy.
F/E: Ah, estamos com eles, finalmente. Estão nos vetorando.
F/O: Estão nos encaixando...
Cap: O quê?
F/O: Estão nos acomodando.
F/E: Eles já sabem que estamos em má situação.
F/O: Estão nos dando prioridade. (sic)
APP: Avianca 052 curva a esquerda, proa dois cinco zero, intercepte o localizador.
F/O: Proa dois cinco zero, Avianca 052 heavy. Quer o ILS, comandante?
APP: Avianca 052, você está a uno cinco milhas do localizador externo. Mantenha dois mil pés até estabilizado no localizador. Autorizados ILS pista 22L.
Cap: Selecione o localizador aqui do meu lado.
F/O: ILS no número 1, cem, dez ponto nove, altímetro dois mil pés.
Cap: Selecione flaps 14.
F/O: Flaps 14, estamos a 13 milhas do localizador externo.
APP: Avianca 052 heavy, se possível, voe com 160 milhas (de velocidade).
Cap: Selecione flaps 25.
F/O: Flaps 25, temos tráfego à frente.
Cap: Podemos manter 140 nós com flaps 25. Quantas milhas mais?
F/O: Sete milhas para o tráfego e 10 milhas para o marcador externo.
APP: Avianca 052 heavy, contate Torre Kennedy em uno uno nove decimal uno, bom dia.
F/O: Uno uno nove decimal uno, grato. Torre Kennedy, Avianca 052 estabilizado para 22 esquerda.
TWR: Avianca 052 heavy, número três para pouso, atrás de um Boeing 727 a nove milhas da final. Você pode aumentar sua velocidade em mais dez nós?
Cap: Dez nós?
F/O: Ok, mais dez nós.
TWR: Aumente! Aumente!
Cap: O que?
F/O: Aumentando.
F/E: Dez nós a mais.
F/O: Mais dez nózinhos.Cap: O que? Me fale as coisas mais alto! Não estou escutando direito.
F/O: Interceptando glideslope.
Cap: Vou aproximar com 140 nós. É essa a velocidade que eles querem, não?
F/O: Eles querem 150 nós, dez nós a mais.
Cap: Trem baixo!
F/O: Trem baixo e travado.
Cap: Landing Checklist! A tripulação executa o check pré-pouso. A torre de Kennedy dá a autorização final para pouso.
TWR: Avianca 052 heavy, livre pouso, vento 190 com vinte nós.
Cap: Flaps 50. Estamos autorizados para pouso?
F/O: Sim, standby para flap 50.
Cap: Me dê 50!
F/E: Tudo pronto para pouso.
F/O: Estamos abaixo do glideslope!
Cap: Confirme o vento.
TWR: Avianca 052 heavy, pode aumentar sua velocidade em mais dez nós ou não?
F/O: Sim, vamos aumentar em mais dez nós.
TWR: Ok, obrigado.
Pelos próximos 90 segundos, o vôo 052 permanece na reta final. O comandante está voando manualmente e luta para conseguir estabilizar o 707 na rampa de planeio, o glideslope. A visibilidade, bastante ruim, os ventos fortes e em rajadas não facilitam a aproximação. De repente, invade a cabine de comando o som da gravação de alerta do alarme de proximidade com o solo, o GPWS (Ground Proximity Warning System). O Boeing está baixo, a apenas 500 pés acima do solo, e perdendo altitude rápido demais. GPWS: Whoop! Whoop! Pull up! Pull Up!F/O: Sink rate! 500 pés!
Cap: Luzes! Cadê as luzes da pista? A pista! Onde está?GPWS: Glideslope!
F/O: Não estou vendo! Não estou vendo!
Cap: Trem em cima! Me dê o trem em cima! Peça outra aproximação!
F/O: Torre Kennedy, Avianca 052 heavy arremetendo!
F/E: Devagar com o nariz! Não suba o nariz! Não suba o nariz!
TWR: Avianca 052 heavy, suba e mantenha 3.000 pés, curva a esquerda proa uno oito zero.O comandante volta-se para os outros tripulantes de cabine e declara o que já é obvio:
Cap: Não temos combustível para outra aproximação!
F/O: Mantenha 2.000 pés, proa uno oito zero.
Cap: Não sei o que aconteceu nesta aproximação. Eu não encontrei a pista!
F/O: Nem eu.
F/E: Nem eu.Cap: Declare emergência!
F/O: Avianca 052 heavy, estamos em curva a direita para a proa 180, e, ah, vamos tentar pousar novamente. Estamos ficando sem combustível.
TWR: Ok.Nesse exato instante, o vôo 052 foi condenado ao seu trágico final. Ao invés de declarar emergência, o co-piloto afirmou à torre que o vôo 052 "estava ficando sem combustível." Essa fraseologia, não habitual, não significa um pedido de emergência. Tivesse o co-piloto, naquele instante, declarado um Mayday, declarado realmente emergência, a torre de Kennedy teria dado prioridade imediata de pouso para o Avianca 052. Esse sério lapso do co-piloto custaria caro demais.
Cap: O que disse a torre?
F/O: Manter dois mil pés, voar na proa 180 e, disse a ele que vamos tentar pousar novamente porque estamos sem combustível.
Cap: Fale para a torre que estamos em emergência. Você declarou emergência?
F/O: Sim, declarei a eles. (sic) Claramente amedrontado pelo comportamento irascível , ríspido do comandante, o co-piloto mentiu ao seu superior. Não apenas ele não declarou emergência (consequentemente, sem receber prioridade para pouso) como então o co-piloto passou a fornecer uma informação falsa. A torre de Kennedy transferiu o vôo para o controle de aproximação, que então iria orientar os procedimentos para uma nova tentativa de pouso. Estes seriam os últimos minutos do Avianca 052.
APP: Avianca 052 heavy, boa noite. Suba e mantenha 3.000 pés.
Cap: Diga a eles que não temos combustível para subir.
F/O: Avianca 052 heavy, subindo para 3.000 pés e, ah, nós estamos ficando sem combustível. APP: Ok, voe proa uno oito zero.
Cap: Você disse a eles que não temos combustível para subir?
F/O: Sim, eu disse. Mas nós temos de manter 3.000 pés e ele vai nos trazer de volta.
Cap: Ok.
APP: Avianca 052 heavy, proa zero sete zero. E, ah, vou colocar vocês a umas quinze milhas a noroeste e então trazê-los de volta, assim terão tempo de se preparar para uma nova aproximação. Está bem assim para o seu combustível?
F/O: A-a-acho que sim, muito obrigado.
Cap: O que ele disse?
F/E: El hombre se callentó! (O homem se esquentou).
F/O: Quinze milhas para o localizador.
Cap: Não, eu vou cortar caminho.
F/O: (Exaltado) Precisamos seguir as instruções para o ILS!
Cap: Para morrer. Não, de jeito nenhum!Pressionado, o co-piloto chama o controle e pede para cortar caminho.
F/O: Kennedy, Avianca 052 heavy. Vocês podem nos colocar na reta final imediatamente?
APP: Avianca 052 heavy, afirmativo. Curva a esquerda, voe proa zero quatro zero.O controle vai trazendo o 707 de volta para uma nova aproximação. As instruções que vem de terra nem sempre são cumpridas à risca. O co-piloto, claramente nervoso, continua a interpretar erroneamente as instruções de proas, velocidades e altitudes, um fato que deixa tanto o controlador como o comandante exasperados. Mais alguns minutos se passam nesse confuso ambiente na cabine de comando do 707.
APP: Avianca 052 heavy, número dois para pouso. TWA 801, você está a oito milhas atrás de um heavy da Avianca, chame a torre em uno uno nove decimal uno. E Avianca 052, proa três três zero.Nesse exato instante, a situação que era crítica torna-se realmente dramática. Um dos motores do 707 apaga por falta de combustível.
F/E: Flame-out! Flame-out no motor quatro!
Cap: Flame-out no motor!
F/E: Flame-out no motor três! Essencial (mínimo de combustível) no dois e no um!
Cap: (exaltado) Mostre-me a pista!
F/O: Avianca 052 heavy, nós, ah, nós perdemos dois motores, precisamos de prioridade, por favor?
APP: Avianca 052 heavy, curva a esquerda, voe proa dois cinco zero.Nesse instante, fica gravado no microfone de cabine o som dos motores número 4 e o número 3 desacelerando por falta de combustível.
F/O: Proa dois cinco zero. Roger.
Cap: Selecione o ILS.
APP: Avianca 052 heavy, você está a 15 milhas do marcador externo, mantenha dois mil pés até o localizador. Autorizado para o ILS da pista 22L.
F/O: Roger, Avianca.
Cap: Selecionou o ILS?
F/O: Selecionado no dois.Nesse momento, os dois motores da asa esquerda se apagam por falta de combustível. Como a geração de energia elétrica é feita pelos geradores alimentados pelos motores dessa asa, o 707 perde todos os comandos e se transforma num enorme, silencioso e impotente planador, voando baixo por sobre os subúrbios de New Jersey. Sem geração de energia, restam apenas as luzes de emergência na cabine de comando. Perdendo altitude e velocidade rapidamente, com poucos controles que ainda podem ser operados, os três tripulantes estão impotentes, amarrados a seus assentos, vendo a aproximação cada vez mais rápida do solo. Os outros 164 ocupantes do vôo 052 nada sabem sobre o destino que lhes espera. Os tripulantes de cabine não alertam os passageiros sobre um pouso forçado. O Boeing vai perdendo altura e velocidade, até o momento em que não mais consegue sustentar-se no ar. Numa reação instintiva, o comandante do vôo 052 puxa cada vez mais o nariz do Boeing para cima, como se tentasse mantê-lo pendurado no ar.O Boeing estola, pára de voar. O agora silencioso quadrimotor despenca do céu escuro e chuvoso com grande aceleração vertical e praticamente nenhuma aceleração horizontal. Literalmente, cai como um tijolo, como um pássaro abatido pela incompetência de sua tripulação. São exatamente 21h35. É o fim do vôo 052. O enorme Boeing 707 cai por entre casas no subúrbio de Cove Neck, uma região de residências de alto padrão. Para azar de seus ocupantes, o Boeing bate exatamente sobre uma ravina. A parte dianteira da fuselagem e a traseira batem contra o início e o fim da elevação, fraturando-se com grande intensidade e matando instantaneamente todos os ocupantes dessas duas áreas. Os três tripulantes técnicos, cinco dos seis comissários, a maioria dos passageiros da primeira classe e das últimas fileiras de assentos da classe econômica morrem numa fração de segundos. O nariz e acabine de comando demolida do Boeing páram a apenas 5 metros de uma casa, e a 200m da casa do pai do tenista norte-americano Joe McEnroe, mas ninguém no solo é atingido pelos destroços. Como não havia mais combustível nos tanques, não há fogo, apenas alguns curto-circuitos provocados pela fiação exposta no severo impacto. A chuva gelada cai sobre as ferragens do 707. Na escuridão, escutam-se apenas os gritos desesperados dos sobreviventes. Famílias inteiras, que haviam retornado à Colombia para as festas de fim de ano, gritam por socorro ou choram por seus mortos e feridos. Em menos de 20 minutos, chegam os primeiros paramédicos e socorristas, alertados pelos moradores locais. Há muita gente presa na cabine de passageiros. O trabalho de resgate dura toda a noite e boa parte da madrugada. Ao final, dos 164 ocupantes, oito tripulantes e 73 passageiros estão mortos, 82 passageiros estão seriamente feridos e apenas três escapam com ferimentos leves. É quase meia noite. Chego ao meu quarto de hotel em Manhattan e ligo a televisão. A primeira cena que vejo é a cauda vermelha do 707, aparentemente intacta, com as enormes letras que formam o nome da empresa, brilhando em meio a troncos de árvores. Repórteres e paramédicos, equipes de resgate e curiosos aglomeram-se no local. O vôo Avianca 052, voando algumas milhas à frente do 767 que me trouxe com segurança à New York, termina numa estúpida, desnecessária tragédia. Uma pane seca provocada por uma pane mental coletiva.
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